Milagros Aguirre A.
Editorial Abya Yala
Leio no Kindle, que quer parecer a um livro de bolso, mas falta alguma coisa. Não tem cheiro. Me incomoda que o livro digital não tenha cheiro nem textura: não estimula os meus sentidos. Aquele cheiro de tinta e papel convidam você a viajar por lugares remotos, a encontrar respostas para milhares de perguntas.
O algoritmo me incomoda… sinto que há uma espécie de censura nele porque assume o que eu gosto e coloca vários títulos na minha pasta como possíveis objetos de desejo, ignorando tantos outros livros, desses que olham e piscam pra gente, quando vamos à livraria ou à biblioteca.
Me incomoda também que, assumindo a diferença entre quem compra livros e quem os lê, usando o Kindle posso comprar com um só ‘clique’ qualquer título sem ir a una livraria e só perceber o desastre no fim do de mês, quando chega a conta do cartão de crédito. Mas é ainda mais chato ver que eu compro e compro e os livros não aparecem na minha estante…. Eles não têm corpo nem materialidade e não aparecem na minha biblioteca… São apenas luz na tela do aparelho que quer parecer um livro, mas não é.
Me incomoda quando os livros salvos em pdf se ajustam ao dispositivo como alguém se ajustando em um terno apertado. De repente estou lendo e sou interrompido por uma manchete intrusiva que aparece do nada, uma linha intrusiva e incômoda ou o número de uma página que desliza e se torna visível na festa das letras, no melhor do capítulo ou no meio de um intenso poema. Me incomoda não poder dobrar a página ou usar o marcador fofo que encontrei na última feira de livros, ou guardar a rosa que minha mãe me deu ou a folha de outono que coloquei entre suas páginas para conservá-las para sempre.
O livro digital faz parte dos meus pesadelos: acordo de sobressalto toda vez que penso no que poderia acontecer se houvesse um apagão eletrônico global e a história e a memória dos povos desaparecessem em um piscar de olhos; tenho pavor de pensar que a nuvem em que os milhares de livros digitalizados e armazenados nos repositórios universitários que hoje substituem as bibliotecas vai explodir; me cansa imaginar que a velocidade da tecnologia vai acabar com os livros sem a necessidade de fogueiras e queimadas, assim como desapareceram os disquetes, os livros interativos feitos para CD-ROM, os livros armazenados em CDs (hoje os novos computadores não têm entradas nem leitores para eles) e até os USBs. Será que a nuvem não tem prazo de validade, nem faz parte da obsolescência programada? E se o livro do futuro estiver nos óculos ou implantado diretamente na retina? Ou em uma vacina ou em um chip?
Pensando bem, o que mais me incomoda no livro digital é a incerteza, não tanto a magia que transforma o milenar objeto-livro em algo intangível: basta um pouco de luz em uma superfície brilhante e pronto.
Me incomoda e me perturba a ideia de que as palavras e as histórias podem nos escapar por entre os dedos, como nuvens de fumaça ou como bolhas de sabão.