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Migrantes e o direito contemporâneo brasileiro

Luís Renato Vedovato*

Neste texto, são abordadas as decisões vigentes na legislação brasileira, referentes à migração, especialmente quanto ao acesso ao auxílio emergencial, ao direito de entrada e assistência médica durante a pandemia.

O avanço do governo brasileiro em direção às ações keynesianas tem sido lento, apesar da análise de que essa seria a melhor saída para a crise econômica (ARRAIS et al., 2020). Em Nota Técnica do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marco Flávio da Cunha Resende defende que “o caminho certo para combater a recessão e o desemprego que resultará da atual pandemia passa pela emissão massiva de dívida pública e moeda” (CEDEPLAR, 2020). Com dificuldades para superar seus chamados preceitos liberais, em 2020 o governo federal relutou em definir o valor do auxílio emergencial, que foi aumentado pelo parlamento de 200 para 500 reais, deixando a definição de 600 reais (o dobro para mulheres que são mães solteiras) ao presidente da República, sob certas condições.

Após esse confronto, ainda houve atraso na promulgação da lei, que exigia a declaração do prefeito sobre o assunto. Os requisitos foram estabelecidos para pessoas que possuem nacionalidade brasileira, com poucos espaços para estrangeiros, pois, apesar de contemplar formalmente os migrantes, há a exigência de comprovação da regularização do Cadastro de Pessoa Física (CPF), entre outros, trazida pela Lei 13.982/ 2020.

Para os migrantes, possuir os documentos implica estar em situação migratória regular, conforme terminologia da Lei 13.445/17. Para os indocumentados, é impossível atender a esses requisitos. Esse fato foi repassado, em meados de abril1, à Caixa Econômica Federal, que na época concentrava a distribuição desses auxílios, pela Defensoria Pública da União (DPU). Não tendo sido obtida resposta satisfatória, em 6 de maio de 2020, a DPU distribuiu Ação Civil Pública (ACP) requerendo proteção urgente contra a Caixa Econômica Federal e o Banco Central do Brasil, com o objetivo de que os migrantes, independentemente de sua situação migratória, pode obter o pagamento do auxílio emergencial, podendo apresentar qualquer documento de identidade, mesmo que caducado, tendo em vista que os sistemas de regularização da situação migratória estão suspensos.

De fato, a DPU trouxe para o processo a informação de que os migrantes têm dificuldades de acesso ao pagamento dos valores, apesar de fazerem parte dos programas sociais do governo brasileiro. Dois elementos importantes se destacam neste ponto. Em primeiro lugar, vale dizer que, devido ao veto do então presidente Temer, o Brasil não possui há muitos anos um programa de anistia para migrantes em situação migratória irregular, tendo em vista que a anistia seria trazida pela Lei 13.445/17 (NLM), que coloca em situação precária quem está há muito tempo no país.

Além disso, existe uma garantia no NLM (art. 4º) de que todos os migrantes residentes no país podem aceder aos serviços públicos, independentemente da sua situação migratória regular (com autorização de residência) ou irregular (sem autorização de residência), bem como como o direito de acesso aos serviços bancários.

O texto do Art. 4º diz o seguinte:
Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados: […] VIII – acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória; […] XIV – direito a abertura de conta bancária[…];

A vulnerabilidade, portanto, é muito evidente nessa luta, pois, embora a lei garanta direitos, outras normas (legais ou não) colocam obstáculos para impedir que o direito seja protegido. Nesse sentido, o ACP da DPU exige que o Banco Central estabeleça diretrizes que oriente todas as instituições bancárias no acesso ou saque do auxílio emergencial e também na solicitação de documentos. Além disso, exige que a Caixa Económica Federal se abstenha de negar o acesso e retirar o benefício aos migrantes que apresentem qualquer documento de identidade emitido pela Polícia Federal, mesmo com validade vencida, bem como a identidade do país de origem ou qualquer documento de identidade brasileira.

Em outras palavras, obter ajuda humanitária, chamada de ajuda emergencial no Brasil, é o primeiro desafio enfrentado pelos migrantes durante a pandemia, pois, além de ser entendido como bastante tímido (KROTH, 2020) pela magnitude da pandemia, ele chegou com regulamentações que criaram obstáculos importantes para que a população migrante se beneficiasse dela. De fato, em tempos de luta por espaço interno, aumentam os casos em que os menos favorecidos estão expostos e têm menos proteção, como está acontecendo com os migrantes no Brasil, considerando que a vulnerabilidade em que se encontram é exacerbada pela Covid-19. Segundo Darlan Christiano Kroth:

O que mais chama a atenção na medida é que, por conta da paralisação do governo, o Congresso acabou assumindo o papel de apresentar e formatar a proposta. O valor proposto para o auxílio, no entanto, foi definido de forma não técnica, mas no grito (a proposta inicial do Ministério da Economia era de R$ 200,00), então o Congresso avaliou em R$ 500, e não ficou para trás , o presidente da república fixou em R$ 600,00. Não é preciso muito esforço intelectual para concluir que, com o perfil de liderança deste Governo Federal, a proposta tem grandes chances de ter pouco impacto.2

A mobilidade humana foi diretamente afetada pela Covid-19, pois os Estados tomaram várias decisões para restringir a circulação de pessoas ao redor do mundo, fechando fronteiras e bloqueando voos internacionais. No Brasil, a Portaria Interministerial 255, de 22 de maio de 2020, impôs restrição à “entrada no País de estrangeiros de qualquer nacionalidade, por via rodoviária ou outro meio terrestre, aéreo ou marítimo” (art. 2º). O direito de entrada do migrante é fruto do avanço dos padrões internacionais de proteção dos direitos humanos (VEDOVATO, 2013, p. 70). Como se vê, esta decisão viola o art. 45 da Lei 13.445/2017, que exige entrevista individual e ato fundamentado para impedir a entrada de migrantes.
Além disso, se o assunto for refugiados, a violação parece mais evidente, como se depreende do artigo 7º e seu § 1º da Lei 9.474/97, nos seguintes termos:

Art. 7º O estrangeiro que chegar ao território nacional poderá expressar sua vontade de solicitar reconhecimento como refugiado a qualquer autoridade migratória que se encontre na fronteira, a qual lhe proporcionará as informações necessárias quanto ao procedimento cabível.
§ 1º Em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.

Assim, uma norma de ordenação que impeça a entrada de migrantes e/ou refugiados viola uma norma jurídica que lhes é superior. Seria mantida uma análise sobre a validade da restrição diante de um cenário de pandemia. Nesse sentido, o fechamento da fronteira só seria possível para conter a propagação do vírus, porém, tal fechamento não impede essa propagação, pois permite que o vírus circule no país de origem da pessoa e, pior ainda, pode impedir sua disseminação na região, levando em conta que o fechamento pode implicar uma cooperação regional negativa, o que leva à análise da questão relacionada ao acesso aos direitos sociais dos migrantes, especialmente o direito à saúde. O problema, portanto, não está na entrada de pessoas que necessitam de assistência humanitária em diferentes países, mas no tratamento dispensado a elas desde seu deslocamento. Nesse sentido, não são as políticas que proíbem a entrada de migrantes para garantir a efetividade da contenção da pandemia, mas, de outra forma, os recursos preconizados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), como a prática de quarentena e devido distanciamento social, além de testagem. Portanto, não foi o impedimento da imigração que gerou o estado de pandemia descontrolada em que o Brasil vem afundando desde os primeiros meses em que se instalou neste país, mas sim a atuação descoordenada de seus governos, especialmente do Presidente da República que, entre o próprio produtivismo do capitalismo e a vida dos brasileiros, não hesitou em escolher a primeira.

Vale ressaltar também que a Defensoria Pública distribuiu ação civil pública (5031124-06.2020.4.04.7100/RS), perante a Justiça Federal de Porto Alegre (RS), para afastar a aplicação da Portaria Interministerial nº. 255, de 22 de maio de 2020, que revogou as Portarias Interministeriais n. 201, 203 e 204, consolidando em um único ato normativo a restrição de entrada no País de estrangeiros de qualquer nacionalidade, por via rodoviária ou por outros meios terrestres, aéreos ou marítimos. Ao falar sobre essa ação, o Advogado da União defendeu a constitucionalidade da portaria atacada, alegando uma questão formal, pois não poderia ter sido proposta em Porto Alegre, mas sim em Brasília. No mérito, o foco da defesa está no fato de que as restrições se baseiam na Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que sanaria a ilegalidade da portaria, tendo em vista que se baseia em caráter excepcional e duração temporária. Ao julgar o caso, o juiz federal de terceira instância. A Jurisdição Federal de Porto Alegre extinguiu a ação sem decisão de mérito, por considerar que a via escolhida seria inadequada, alegando que o Poder Judiciário não pode admitir ação civil pública destinada a declarar a ilegalidade de norma, sem apontar ato lesivo específico. No entanto, em julgamento com finalidade diversa, mas com estrutura processual semelhante, esse entendimento parece ser contrário ao dado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 511961, no qual, de um Ação Civil Pública, foi considerado inaplicável, decreto que exigia diploma para exercer a função de jornalista. É importante que o recurso seja julgado com celeridade para uniformizar as decisões e afastar qualquer infração à lei.

Esta é também uma fronteira para eles, durante o avanço do Covid-19. Em primeiro lugar, cabe destacar as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a aplicação dos direitos fundamentais aos migrantes, nos seguintes termos:
O sujeito estrangeiro, inclusive o morador de rua no Brasil, tem direito a todas as prerrogativas básicas que asseguram a preservação do estado libertatis e a observância, pelo poder público, da cláusula constitucional do devido processo legal. […] A condição jurídica de estrangeiro do Brasil e o fato de o estrangeiro acusado não ter domicílio em nosso país não legitima a adoção, contra o referido acusado, de qualquer tratamento arbitrário ou discriminatório. O Poder Judiciário tem o dever de assegurar, mesmo ao acusado estrangeiro em situação de rua no Brasil, os direitos básicos decorrentes do postulado do devido processo legal, em especial as prerrogativas inerentes à garantia de ampla defesa, garantia do contraditório, igualdade das partes perante o juiz natural e a garantia de imparcialidade do juiz de instrução. [HC 94.016, rel. min. Celso de Mello, j. 16-9-2008, 2ª T, DJE de 27-2-2009.] Vide HC 94.477, rel. min. Gilmar Mendes, j. 6-92011, 2ª T, DJE de 8-2-2012 Vide HC 72.391 QO, rel. min. Celso de Mello, j. 8-3-1995, P, DJ de 17-3-1995.

Igualdade de tratamento para brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil. O alcance do disposto no caput do art. 5º da Constituição Federal deve ser estabelecido levando-se em conta a referência aos diferentes pontos [Ext 1.028, rel. min. Marco Aurélio, j. 10-8-2006, P, DJ de 8-9-2006.].

Em 2017, o STF decidiu a favor dos migrantes na questão dos direitos sociais, no Recurso Extraordinário (RE) 587970, indicando que os estrangeiros residentes no país têm direito à concessão de benefícios assistenciais (BPC). O relator citou o artigo 5º caput da Constituição Federal, que trata do princípio da igualdade e da necessidade de igualdade de tratamento entre brasileiros e estrangeiros residentes no país, alegando que “esses são os parâmetros materiais para começar a interpretar a norma questionada “. Segundo o Ministro Marco Aurélio no RE 587970, o fato de a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993) silenciar sobre a concessão de benefícios a estrangeiros residentes no país não invalida o espírito constitucional, cabendo observar que, para a lei, a residência é um degrau antes do lar; portanto, não deve ser interpretado como significando que os estrangeiros residentes são apenas aqueles em status regular de imigração. A residência é um fato, conforme estabelece o Código Civil, Art. 70. “O domicílio da pessoa física é o lugar onde está fixa sua residência com espírito definitivo.” Assim, o residente estrangeiro mencionado no caput do artigo 5º da Constituição Federal é aquele que reside no Brasil, estando ou não em situação migratória regular. Nesse sentido, a população migrante residente no Brasil tem direito ao acesso à assistência médica. Em importante decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de Roraima (TJRR) determinou a inconstitucionalidade de uma lei que restringe o acesso à assistência médica a migrantes, uma vez que a Constituição trata a saúde como um direito humano fundamental, garantindo o acesso universal e igualitário com plena tratamento. É um direito social de natureza pública subjetiva, de natureza híbrida, constituído ao mesmo tempo como direito individual e social, com efeito concreto que exige uma interpretação positiva do “Estado” e da sociedade, impondo sua inclusão nas políticas públicas. (Art. 196 da CF/88 e art. 135 da Constituição Estadual do RR) ADI 9000025-43.2020.8.23.0000 – Relator: Des. Almir Padilha. Julgado em 6 de março de 2020.

Apesar de ser uma decisão regional, não é isolada. A Procuradoria Federal dos Direitos da Cidadania (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF), defendeu a inconstitucionalidade da restrição ao acesso dos migrantes ao direito à saúde, em 11 de fevereiro de 2020, afirmando que:
A restrição de acesso aos serviços de saúde imposta a migrantes e refugiados por lei em Boa Vista, em Roraima, é inconstitucional, além de violar a legislação nacional e os compromissos internacionais firmados pelo Estado brasileiro. Nesse sentido, é possível afirmar que os migrantes têm garantido o acesso à saúde e podem receber tratamento mesmo em casos de contaminação pela Covid-19, que se espalhou pelo mundo como uma pandemia.

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