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A literatura e o migrar: a potência em se reconhecer em outros olhares

Carla Craice da Silva *

Ultrapassar a fronteira entre países envolve não apenas uma passagem física, envolve o mergulho em outra cultura, costumes, leis, em alguns casos uma nova língua, entre outras dimensões que, enfim, o sujeito que migrante ou refugiado submerge sem, muitas vezes, saber o que esperar do deslocar-se. Para fazer sua nova morada, o migrante ou refugiado necessita compreender esse lugar desconhecido e, ao mesmo tempo, caminha para se compreender nesse novo lugar. Compreender esse novo lugar significa aos poucos aprender como circular nesta cidade, desde aspectos práticos como utilizar o transporte, obter sua documentação, o valor da moeda local, como também quais são os seus direitos enquanto migrante ou refugiado. Agora compreender-se nesse novo lugar consiste em tomar consciência das particularidades envolvidas na experiência de quem migra, experiência atravessada com questões referentes à raça, gênero, classe, lugar de origem, entre diferentes outros aspectos que imprime particularidades ao migrar.

Tais faces do migrar, compreender e se compreender no lugar, se colocam como pilares no processo do acolhimento a pessoa migrante ou refugiada. As ações que envolvem uma recepção como o apoio na retirada de documentação, o ensino da língua, a disponibilização de moradia temporária e alimentos, o serviço de oferta de vagas são fundamentais para proporcionar àqueles e àquelas condições dignas de existência no novo país. Contudo, tratar o acolhimento compreendendo o encontro da vivência do sujeito migrante ou refugiado no seu país de origem com uma estrutura social e cultural “estrangeira” requer ouvi-lo ou ouvi-la mais atentamente. A realização do acolhimento envolve uma sensibilização do olhar daqueles e daquelas que se envolvem diretamente no processo bem como também da sociedade que se envolvem de forma indireta e cotidiana.

A literatura1 mostra-se potente para uma aproximação da complexidade do processo de migrar. Entrar em contato com as histórias, seja através da literatura ou outras linguagens, possibilita olhar para aflições, vivências e conquistas de quem escolheu migrar ou quem foi expulso do seu país. Existem diferentes iniciativas que se dedicam a organizar e fomentar este tipo de literatura, como clubes de livro “Leituras dos Girassóis”, o clube do “International Network for Students of Migration Studies” (INSMS) 2 e o “Literatura Entre Fronteiras” da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) 3, listas com indicações da Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), Cáritas e Observatório das Migrações em São Paulo entre outras mídias. Aqui apresento alguns livros que tive o prazer em ler e que trouxe diferentes reflexões sobre a experiência de migrar.

Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana de grande destaque mundial, trata do fenômeno migratório em sua obra Americanah, com a saída da jovem Ifemelu da Nigéria e o encontrar-se mulher, negra e imigrante na sociedade norte-americana, como também aborda o retorno à Nigéria após alguns anos, quando se atribui a identidade de americanah à Ifemelu, um termo utilizado àquelas que realizam o movimento de volta à Nigéria. No trecho “(…) com o sotaque anasalado e escorregadio que usava quando falava com americanos brancos, na presença de americanos brancos, ou onde pudesse ser ouvida por americanos brancos. Junto com o sotaque, surgia uma nova personalidade, de alguém que pedia desculpas, rebaixava-se” (ADICHIE, 2013, p.120) observa-se como o fenômeno migratório se põe como um dos pontos centrais de Americanah em um conflito sobre língua e comportamento sobre o viver nos Estados Unidos.

Em um misto de biografia e ficção, ou melhor, em uma autoficção, Kalaf Epalanga, um escritor e músico angolano, com seu livro Também os Brancos Sabem Dançar explicita as contradições de ser um imigrante africano na Europa e o sentimento de não ser bem-vindo que ronda sua vivência no país onde vive. No trecho: “A minha identidade pessoal ganhou forma dentro destas fronteiras, sou músico, aspirante e escritor e depois, claro, também emigrante. E divirto-me quando me dizem ‘tu já não és angolano’, o que é, no meu entender, uma forma de dizer ‘tu já não és negro’” (EPALANGA, 2017, p. 48), Kalaf demonstra as construções e contradições do fenômeno migratório, quando não se sente mais pertencente onde vive nem ao menos ao lugar que deixou. Da mesma forma que Chimamanda, Kalaf aponta para a relevância da migração para sua própria identidade, o ser migrante também envolve seu estar no mundo.

A biografia Longe de Casa: Minha Jornada e Histórias de Refugiadas pelo mundo da ganhadora do prêmio Nobel da Paz, Malala Yousafzai. O livro trata da sua própria memória juntamente com a história de nove outras meninas refugiadas de diferentes parte do mundo, desde o Oriente Médio até a América Latina, que deixaram para trás seu lar em situações de conflitos, com a necessidade de se refazer em um novo país. “Não sou muito emotiva, mas chorei naquele dia. Chorei pela vida que estava sendo forçada a deixar para trás. Me preocupava que nunca voltaria a ver minha casa, minhas amigas ou minha escola de novo. Uma repórter tinha me perguntado pouco antes como eu ia me sentir se um dia tivesse que deixar o vale e nunca mais voltar. Na hora, achei que era uma pergunta ridícula, porque nem conseguia imaginar a possibilidade. Mas agora estávamos nós, partindo, e eu não sabia quando voltaria” (YOUSAFZAI, 2019, p. 28-29). O trecho biográfico mostra a experiência visceral do refúgio, bem como a insensibilização do outro, no caso a repórter, em abordar um movimento tão disruptivo.

O livro Longe de Casa traz um aspecto importante: a experiência de migrar é individual, porém existem pontos de vivências coletivas que se entrecruzam. Pelos aspectos que se assemelham nas trajetórias, seja conquistas ou dificuldades, cotidiano, alegrias e tristeza, a literatura migrante ou a literatura diaspórica enrique os espaços de acolhimento ou mesmo torna outros espaços mais acolhedores, como escolas e universidades. Ou mesmo apresentam histórias onde migrantes e refugiados se reconheçam e compreendam que o migrar se faz também como coletivo.

Diversas obras tratam da temática (além das citadas acima): Azul Corvo da brasileira Adriana Lisboa, Adeus, Haiti da haitiana Edwidge Danticat, Cidade Aberta do nigeriano Teju Cole, Coração Azedo da chinesa (ou sino-americana) Jenny Zhang, O ventre do Atlântico da senegalesa Fatou Diome, Persépolis da iraniana Marjane Satrapi, as obras do moçambicano Mia Couto, entre outros tantos nomes. Fica o convite para explorar a diversidade de livros que provocam uma reflexão mais profunda sobre o que é migrar e, consequentemente, o que significa pertencer e se aproximar à questões tão únicas enfrentadas por quem passou pela experiência de migrar ou, no caso mais extremo, pela necessidade de se refugiar em outro país.

*Docente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), faz parte da Rede Universitária de Pesquisas e Estudos Migratórios (Rupem) e Observatório das Migrações do Estado da Bahia. Coordena o projeto Diálogos Afetivos: rodas de conversa com migrantes e refugiados.

1 Ressalto aqui que minha aproximação com a literatura se realiza como pesquisadora e extensionista sobre o temas das migrações e entusiasta de literaturas.

2 As informações sobre os clubes de leitura podem ser encontrada em
https://leiturasdosgirassois.wordpress.com/ e https://www.insms-network.org/book-club.

3 A lista sistematizada pelo ACNUR está disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/04/22/12-
livros-sobre-refugio-para-ler-na-quarentena/ e da Caritás está disponível em: http://www.caritas-rj.org.br/50-
livros-sobre-refugio-e-migracao.html. Já as indicações do bservatório das Migrações em São Paulo estão
disponíveis no material no seguinte link: https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/cps.php.


Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

EPALANGA, Kalaf. Também os brancos sabem dançar. Um romance musical. São Paulo: Todavia;. 2017.

YOUSAFZAI, Malala. Longe de casa: minha jornada e histórias de refugiadas pelo mundo. Tradução Lígia Azevedo. São Paulo: Seguinte, 2019.

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