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A literatura e as soluções duráveis frente a mobilidade humana

Maria Luiza Silva Santos *

Os fluxos migratórios oferecem uma série de possibilidades de análises, indicando os trâmites burocráticos, as violações, as perspectivas históricas e geográficas, bem como a gama de conceitos e comportamentos atrelados ao fenômeno. Nesse sentido, aspectos como o acolhimento, a vulnerabilidade, o preconceito, a identidade, a xenofobia e tantos outros são debatidos nas organizações e abarcados pelas legislações e normativas. São assuntos cotidianos e paralelos que acompanham os debates e dão muitas vezes o tom de como a mobilidade está se desenvolvendo.

As relações humanas são chamadas assim a um repensar no que tange as interações entre o eu e o outro. Nessa vertente, a comunidade internacional e os Estados buscam então soluções duradouras com o intuito da reconstrução da vida de migrantes e refugiados. No Brasil, a Lei 9474/97 junto a Convenção dos Refugiados de 1951 dispõem sobre as soluções duráveis nos seus artigos 42 a 46, discorrendo sobre a integração local e sobre as condições de fixação do migrante ou refugiado ao território nacional como descrito no título VII, capítulos I, II e III.

O ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) trabalha com as três propostas: a repatriação, o reassentamento e a integração local. Se a repatriação consiste no retorno voluntário ao espaço de origem, na maioria dos casos bem pouco provável, e o reassentamento numa mudança de espaço devido a lacunas no processo de acolhimento pelo país ao qual o visto foi solicitado, a terceira e mais significativa proposta para essa discussão concentra-se na integração local que segundo Goodwin-Gil (2014) “é a residência do refugiado na primeira comunidade de acolhida e sua aceitação pela mesma”. Sem dúvida um processo muitas vezes lento, complexo e gradual que irá determinar a qualidade de vida do refugiado. “Há questões jurídicas envolvidas, mas são igualmente importantes os aspectos econômicos, sociais e culturais do local de integração.” (ACNUR, 2019, p.33).

Diversos aspectos impactam essa realidade de integração, a exemplo do preconceito e discriminação, apresentando como resultado o sentimento de não pertença, baixa estima, remuneração e reconhecimento precários, falta de conhecimento sobre seus direitos e deveres, pouco acesso aos serviços públicos de saúde e educação entre tantas outras realidades. Portanto, apesar da legislação prever esses três aspectos importantíssimos e que tem tido relevância em vários espaços, percebe-se que ainda não é suficiente.

Falar da integração é falar de cotidiano, de vivências, portanto políticas públicas voltadas à especificidades que contemplem tanto os que estão sendo acolhidos como àqueles que estão a acolher são necessárias. O acolhimento, a acessibilidade por diversas universidades, através dos seus cursos, em todos os níveis: federal, estadual e municipal, já é uma realidade em muitos espaços do território brasileiro. O ensino da língua materna por brasileiros a pessoas de outras nacionalidades, bem como o intercâmbio cultural e ensino de língua estrangeira promovido por instituições também são uma constante. O aproveitamento de estudos, a revalidação de diplomas e o rigor relativo ou sensível frente aos documentos que muitos refugiados não possuem por razões óbvias, também podem ser elencados no rol das boas práticas visando a integração local.
Chamo atenção aqui para um elemento que não está evidenciado na normativa mas que tem uma representação significativa no que tange ao acolhimento e que invariavelmente pode ser objeto de políticas públicas: a literatura. Esse elemento pode fazer a diferença para o eu e para o outro. Como se evidenciam as representações? Que papel o local ou o migrante ocupam no texto? Como as narrativas se desenrolam e como são apresentados os contextos históricos e geográficos? Quais os debates e embates que o texto propõe e como ele é utilizado no âmbito familiar, nas salas de aulas das escolas e das universidades e nos momentos de recreação e lazer? Essas questões são ricas inferências que demonstram o reflexo da realidade em que se está inserido.
Essas perspectivas são relevantes por se tratar de posturas educativas e empáticas frente a realidade do outro. Ensinamentos e discussões que podem ser travados em qualquer espaço e com pessoas de todas as idades e grupos sociais promovendo conhecimento, percepções e construção de cidadania.

A experiência com o tema das migrações e do refúgio com livros a exemplo de Tonico descobre que é de todo lugar (Editus,2014), As viagens de Carola Migrista: migrante ou turista? (Editus, 2016), Intercambiando com Demétrius e Felipa (Editus, 2017), Caderno de identidades de Serena Kiza (Editus, 2020) e Tarfi na estrada- ficção e realidade na trajetória de refugiados (Editus, 2018) me autorizam a afirmar que as discussões propiciadas por esses e tantos outros textos de mesmo segmento, podem fazer a diferença nas interações realizadas entre população local e populações migrantes. Para ambos os grupos, ler e se ver representado em movimentos como Êxodo rural e diáspora, apreender conceitos e expressões culturais típicas da nova residência ou de grupos externos, ter seus direitos e deveres observados e respeitados no novo espaço, entender conceitos característicos da mobilidade humana e ter evidenciado fenômenos como o deslocamento forçado, o racismo, a xenofobia, a empatia, o acolhimento, a vulnerabilidade podem minimizar as resistências e promover o fortalecimento das relações sociais.

A literatura se bem escolhida, bem trabalhada e acessível aos públicos naturaliza as relações uma vez que as populações locais e migrantes tendem a se perceber nas representações podendo assimilar dessa forma boas práticas, comportamentos satisfatórios e diversas formas de interações calcadas no respeito, na diversidade cultural, no fomento à qualidade de vida e nos direitos humanos.

Se a escrita e a leitura para jovens e adultos pode promover discussões, conhecimento e mudança de perspectiva; para crianças e adolescentes pode estruturar seu caráter e alicerçar sua construção individual e coletiva dando origem a cidadãos que muito além de apenas viver, aceitam a rica tarefa do conviver.

*Professora titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Doutorara em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e mestre em Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Líder do Grupo de Pesquisa Observatório das Migrações do Estado da Bahia e coordenadora dos projetos de pesquisa Migrações e Refúgio os muros e as pontes do Brasil no século XXI e A pandemia e o comportamento xenofóbico frente a migrantes e refugiados. Membro do RUPEM – Rede Universitária de Pesquisa sobre Migrações e autora de livros infantojuvenis, a exemplo de Tonico descobre que é de todo lugar e Carola Migrista migrante ou turista?, e livros acadêmicos e literários, a exemplo de Tarfi na estrada: ficção e realidade na trajetória de refugiados, O quibe no tabuleiro da baiana e Fluxos contemporâneos.

 

Referências

ACNUR (ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS). O que é a CSVM. 2019. n.p. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/catedra-sergio-vieira-de-mello/. Acesso em: 23 jan. 2022.
GOODWIN-GILL, G. S. The international law of refugee protection. In: FIDDIAN- QASMIYEH, E. et al. The Oxford handbook of refugee and forced migration studies. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 36-47.
JUBILUT,L. L.; GODOY,G. G. de (orgs.) Refúgio no Brasil: Comentários à Lei 9.474/97. São Paulo: Quartier Latin/ACNUR, 2017.
BRASIL. Lei nº 9.474: Define os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. 1997. n.p. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm. Acesso em: 1 mar. 2022.

 

 

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